quinta-feira, 29 de maio de 2014

Ser humano X ídolo: a novidade do “Alegria do Evangelho” (Parte final)




Jung Mo Sung


Adital
Uma das grandes novidades do documento "Alegria do Evangelho”, e na minha opinião a mais importante contribuição ao mundo de hoje é a de colocar a crítica à idolatria do dinheiro e à absolutização do mercado no centro da discussão teológica e da missão de evangelização. O anúncio da boa-nova deve sempre ser pensada e realizada a partir do discernimento dos principais problemas que afetam a vida dos mais vulneráveis e um juízo teológico sobre o mundo.
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O papa Francisco rompe com a linha de pensamento que tem predominado nas últimas décadas na Igreja Católica: que o mundo moderno é ateu, secularizado e fundado na razão e que a teologia deve traduzir a mensagem da fé à mentalidade racional e "adulta” da modernidade. Isto é, mostrar aos modernos que ainda vale a pena crer em Deus. Para o papa – assim como para vários teólogos da libertação –, a modernidade capitalista não é ateu, mas idólatra. O bezerro de ouro se apresenta nos nossos dias sob a forma de fetichismo e idolatria do dinheiro e de uma ditadura da economia sem rosto (cf. n. 55).
Ao retomar o conceito bíblico da idolatria, o papa nos mostra que a missão central da Igreja não é de anunciar e "provar” que Deus existe, mas a de discernir entre os deuses que estão em "luta” no mundo. A Bíblia, no fundo, trata fundamentalmente de uma questão: qual Deus é o verdadeiro, onde Deus está. (Vale a pena lembrar aqui de um livro de Carlos Mesters, "Deus, onde estás?”) O Novo Testamento nos diz que o Deus está onde as pessoas amam umas a outras na relação de gratuidade (ver especialmente 1Jo 4) e por isso lutam pela justiça e Vida.
No discernimento da idolatria no capitalismo, o papa não utiliza um argumento religioso para criticar os falsos deuses. Ele não diz, por exemplo, que a absolutização do mercado é idolatria porque isso vai contra os ensinamentos da Igreja ou porque só Deus pode ser considerado absoluto. Especialmente esse segundo argumento levaria a uma discussão abstrata sobre o ser absoluto e perderia de vista a realidade concreta de opressão, exclusão e morte contra a qual devemos anunciar com alegria o Evangelho. O principal critério utilizado por papa para criticar a idolatria é que o fetichismo do dinheiro e a absolutização do mercado inverte o papel da economia: o de estar a serviço da vida humana e do bem comum de toda a sociedade, isto é, também dos excluídos do mercado. O ídolo se opõe ao ser humano concreto, por isso, se opõe a Deus da Vida.
A vida concreta do ser humano vulnerável é o critério para discernir entre ídolo e Deus. Não porque o papa esteja caindo em um reducionismo antropológico negando o "teocentrismo”, como alguém poderia argumentar, mas porque a fé cristã confessa que Deus entrou na história pela encarnação em um ser humano concreto, nascido pobre na periferia do mundo. Para a fé cristã, não há caminho a Deus que não passe pelo ser humano concreto; não há como encontrar a face do Jesus Ressuscitado a não ser na face das vítimas das opressões e explorações.
Por isso, a evangelização não pode passar ao lado das pessoas concretas que estão morrendo antes do tempo, seja pela pobreza ou pela violência que cresce alimentada pelo aumento tão brutal da desigualdade social, do escândalo de ostentações absurdas (como carros de 2,3 milhões de euros) frente a tantas pessoas que lutam desesperadamente para conseguir o "pão de cada dia”.
Há no documento, sem dúvida, partes importantes sobre novos caminhos e modos de funcionamento da Igreja. Mas, como o papa nos lembra, a Igreja não é o ponto de chegada de uma caminhada, mas um "porto” onde buscamos força para sair ao mundo e anunciar a boa-nova. E esse anúncio só será boa-nova aos pobres (cf Lc 4), se desmascararmos os ídolos que hoje dominam cabeças e corações de muitas pessoas – mesmo das que estão nas nossas igrejas – e levarmos a esperança e o testemunho de que Deus ainda continua ouvindo os seus clamores e está às nossas portas batendo, para que abramos nossos ouvidos e a nossa visão e lutemos por uma sociedade mais humana.
[Jung Mo Sung escreveu com Hugo Assmann, do "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres”, Paulus. Twitter: @jungmosung]FONTE: http://site.adital.com.br/site/noticia.php?lang=PT&cod=80733

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