Em 2013 já se passaram
125 anos da Lei Áurea de 1888, por meio da qual foi abolida, juridicamente, a
escravidão negra no Brasil, mesmo que naquela data mais de 95% dos negros já
haviam conseguido, por seus próprios esforços, a liberdade.
(“ZUMBI”, pintura por Antônio
Parreiras)
Creio, porém, continuar a ser necessário nos
interrogarmos até que ponto a discriminação racial ainda persiste, tanto em nós
mesmos, no estado brasileiro em todos os seus segmentos - especialmente nas
políticas públicas referentes ao acesso ao ensino público, à assistência
médica, ao emprego -, como também na Igreja Católica e em muitas outras
denominações religiosas.
Uma reflexão sobre o
texto que segue, há anos escrito por Leonardo Boff, ajuda a nos interrogar a
nós mesmos no concernente à atitude de cada um(a) diante da maior parte do povo
brasileiro.
“Meu irmão
branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te
contristei? Responde-me!
Eu te inspirei a música carregada de banzo e o
ritmo contagiante. Eu te ensinei como usar o bumbo, a cuíca e o atabaque. Fui
eu que te dei o rock e a ginga do samba. E tu tomaste do que era meu, fizeste
nome e renome, acumulaste dinheiro com tuas composições e nada me devolveste.
Eu desci os morros, te mostrei um mundo de sonhos,
de uma fraternidade sem barreiras. Eu criei mil fantasias multicores e te
preparei a maior festa do mundo: dancei o carnaval para ti. E tu te alegraste e
me aplaudiste de pé. Mas logo, logo, me esqueceste, reenviando-me ao morro, à
favela, à realidade nua e crua do desemprego, da fome e da opressão.
Meu irmão
branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei?
Responde-me!
Eu te dei em herança o prato do dia-a-dia, o feijão
e o arroz. Dos restos que recebia, fiz a feijoada, o vatapá, o efó e o acarajé:
a cozinha típica da Bahia. E tu me deixas passar fome. E permites que minhas
crianças morram famintas ou que seus cérebros sejam irremediavelmente afetados,
infantilizando-as para sempre.
Eu fui arrancado violentamente de minha pátria africana. Conheci o
navio-fantasma dos negreiros. Fui feito coisa, “peça”, escravo. Fui a mãe-preta
para teus filhos e filhas. Cultivei os campos, plantei o fumo para o cigarro e
a cana para o açúcar. Fiz todos os trabalhos. E tu me chamas de preguiçoso e me
prendes por vadiagem. Por causa da cor da minha pele me discriminas e me tratas
ainda como se continuasse escravo.
Meu irmão branco, minha irmã
branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!
Eu soube resistir, consegui fugir e fundar
quilombos: sociedades fraternais, sem escravos, de gente pobre mas livre,
negros, mestiços e brancos. Eu transmiti, apesar do açoite em minhas costas, a
cordialidade e a doçura à alma brasileira. E tu me caçaste como bicho,
arrasaste meus quilombos e ainda hoje impedes que a abolição da miséria que
escraviza, continue como realidade cotidiana e efetiva.
Eu te mostrei o que significa ser templo vivo de
Deus. E, por isso, como sentir Deus no corpo cheio de axé e celebrá-lo no
ritmo, na dança e nas comidas sagradas. E tu reprimiste minhas religiões
chamando-as de ritos afro-brasileiros ou de simples folclore. Não raro, fizeste
da macumba caso de polícia.
Meu irmão
branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei?
Responde-me!
Quando com muito esforço e sacrifício consegui
ascender um pouco na vida, ganhando um salário suado, comprando minha casinha,
educando meus filhos e filhas, cantando o meu samba, torcendo pelo meu time de
estimação e podendo tomar no fim de semana uma cervejinha com os amigos, tu
dizes que sou um negro de alma branca, diminuindo assim o valor de nossa alma
de negros, dignos e trabalhadores. E nos concursos em igual condição quase
sempre tu me preteres em favor de um branco. Porque sou negro.
E quando se pensaram políticas públicas para
reparar a perversidade histórica, permitindo-me o que sempre me negaste,
estudar e me formar nas universidades e assim melhorar minha vida e de minha
família, a maioria dos teus grita: é contra a constituição, é uma
discriminação, é uma injustiça social. Mas finalmente a Justiça agora nos fez
justiça e nos abriu as portas das universidades federais.
Meu irmão
branco, minha irmã branca, meu povo: Que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!”
“RESPONDE-ME, POR FAVOR”.
E nós brancos, os que dispomos do ter, do saber e
do poder, geralmente calamos, envergonhados e cabisbaixos. É hora de escutar o
lamento destes nossos irmãos e irmãs afro-descendentes, somar forças com eles e
construir juntos uma sociedade inclusiva, pluralista, mestiça, fraterna,
cordial onde nunca mais haverá, como ainda continua havendo no campo, pessoas
que se atrevem a escravizar outras pessoas.
OXALÁ
POSSASMOS GRITAR: “ESCRAVIDÃO NUNCA MAIS!”
E ENXUGANDO
AS LÁGRIMAS
PODEMOS
DIZER COMO NO APOCALIPSE:
TUDO ISSO PASSOU!”
TUDO ISSO PASSOU!”
Fortaleza, 20-11-2013,
texto apresentado e postado por Geraldo Frencken
Nenhum comentário:
Postar um comentário