Com Francisco, acaba a monarquia pontifícia
Depois de mais de um milênio, foi posto fim à monarquia pontifícia. A mensagem de Francisco é a recusa de aparecer como um chefe de Estado: a missão do papa não é de ordem temporal.
Publicamos aqui um trecho do livro de Vannino Chiti, intitulado Tra terra e cielo. Credenti e non credenti nella società globale (Giunti Editore, 192 páginas), nas livrarias a partir do dia 7 de maio.
Chiti é membro do Partido Democrático italiano, foi vice-presidente do Senado da Itália (2008-2013), ministro para as Relações com o Parlamento (2006-2008) e presidente da região da Toscana (1992-2000).
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O texto foi publicado no jornal Europa, 25-04-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Nos últimos dois-três anos, houve acontecimentos de extraordinário
relevo que constituem uma referência importante para o diálogo entre
política e religião: certamente não podem deixar indiferente uma
esquerda plural europeia.
Bento XVI renunciou:
eram quase 600 anos que não se verificava um fato desses. A renúncia
foi vivida pelos fiéis com preocupação e angústia: ao mesmo tempo como
um sinal de grandeza na humildade. O reconhecimento da própria fraqueza
por parte do papa teólogo, tão oposta à reação que João Paulo II
teve diante da velhice e da doença, do mesmo modo encontrou a
participação dos fiéis, o respeito mesmo daqueles que não tinham
compartilhado as escolhas do seu magistério.
Na queda dos valores que parecem nos submergir, o gesto de Bento XVI pareceu cada vez mais como uma lição de vida e de fé.
O conclave deu à Igreja um papa que marcou uma reviravolta
impressionante, reacendendo a esperança nos fiéis e afirmando-se no
mundo como único líder moral, expressado por aquela mesma Igreja que
parecia a muitos em crise irreversível.
A reviravolta já se anunciou no seu apresentar-se na Praça de São Pedro: o nome, inédito, Francisco, que já alude a um projeto; a ênfase do seu papel de pontífice da Igreja universal, como bispo de Roma;
o seu recolhimento, com a cabeça inclinada diante do povo, ao qual
pedira para rezar a Deus para que abençoasse o bispo antes da bênção do
bispo aos fiéis.
Confirma-se a possibilidade de entendimentos – respeitosas às
recíprocas autonomias – entre forças progressistas e Igreja. O diálogo
diz respeito aos desafios abertos diante de nós: o futuro das nossas
sociedades; a afirmação da dignidade de cada pessoa, não óbvia diante da
revolução tecnológico-científica, da globalização, da vacilação da
democracia ainda encerrada nas fronteiras dos Estados-nação; um
desenvolvimento social e ambientalmente sustentável, sem o qual
fraternidade e paz seriam uma ilusão.
Na definição da missão da Igreja, para o papa, está a distinção de
papéis e a recíproca autonomia com a política: a esta última cabe a
tarefa de contribuir para tornar a vida das sociedades cada vez mais
humana, ancorando-a nos valores da solidariedade, da justiça, do direito
e da paz.
A oposição à guerra, ao menos a partir dos papas que guiaram a Igreja
no século XX, representa um aspecto constante. Nem sempre foi assim:
durante muito tempo, a referência à possibilidade de uma guerra justa
teve cidadania na Igreja. A entrada em cena da história do risco de uma
catástrofe nuclear varreu toda ambiguidade.
Há uma continuidade no magistério dos últimos papas em condenar a guerra e invocar a paz: de João XXIII, com aquela extraordinária encíclica que foi a Pacem in terris, a Paulo VI, com a Populorum Progressio e com o grito, no discurso à ONU, "nunca mais, nunca mais a guerra!", de João Paulo II, com a sua tenaz, desesperada e infelizmente vã tentativa de impedir a intervenção militar no Iraque, à lição de Bento XVI, para afirmar a não violência entre os homens e com a Criação.
O que impressionou no papel do Papa Francisco contra uma intervenção militar exterior na Síria
não foi, portanto, o "não" ao uso das armas, mas sim a força das suas
palavras, a capacidade de congregar, em uma grande ação política,
cristãos, crentes de outras religiões, não crentes. O povo da paz, desta
vez, prevaleceu: não era óbvio.
Palavras, gestos, decisões do novo papa permitiram entrever um projeto de renovação da Igreja.
Depois de mais de um milênio, foi posto fim à monarquia pontifícia. A mensagem de Francisco é a recusa de aparecer como um chefe de Estado: a missão do papa não é de ordem temporal.
É preciso captar a configuração que guia este primeiro ano de
pontificado: de um lado, a prioridade que a solidariedade deve voltar a
representar; de outro, a escolha do diálogo com todos, não só com os
fiéis, mas com os homens e as mulheres que vivem a difícil cotidianidade
deste início de século.
fonte: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/530678-com-francisco-acaba-a-monarquia-pontificia
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